segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O silêncio que virou escândalo

O livro de Amaury Ribeiro Jr. estava anunciado havia tempo. Desde que a velha mídia quis culpar o autor, numa espécie de habeas corpus preventivo encomendado por José Serra, de montar um dossiê contra o então candidato tucano à Presidência da República.  No entanto, talvezA Privataria Tucana não fizesse tanto sucesso não fosse o extraordinário silêncio das principais famílias da chamada grande mídia. Dizia-me um amigo, jornalista dos bons, que caso saísse com aquele título e com todas as páginas em branco, o livro causaria estardalhaço de qualquer maneira pelo escândalo do silêncio.

Diríamos que a velha mídia desconhece os novos tempos. Parece não saber que deixou de falar solitariamente. Há outros atores no pedaço, que não podem mais ser ignorados, subestimados, como ela o faz. Há as exceções da grande mídia, como CartaCapital, como Terra Magazine, há os blogueiros progressistas e há as impressionantes redes sociais, que se comunicam horizontalmente, não esperam mais a palavra de ordem dos vetustos senhores midiáticos.
As redes sociais divulgam o que consideram apropriado, tornaram-se mais capazes de captar o que é notícia do que eles, os comunicadores de antanho, que se acreditam ainda senhores da capacidade de decidir o que é e o que não é acontecimento digno de ser noticiado. Houve choro e ranger de dentes quando as redes sociais elevaram sua voz, disseminaram-na, provocando colunistas, tevês, jornalões, revistas, todo o conservadorismo midiático, sobre o porquê daquele silêncio.

O silêncio tornou-se um escândalo. Afinal, em poucas horas o livro tornara-se um best-seller, não poderia ser ignorado. E não poderia, além de tudo, porque revela, de maneira muito clara, uma parte ponderável do escandaloso processo de privatização levado à frente pelo governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso que envolveu, de maneira absolutamente comprovada, o ex-governador de São Paulo e ex-candidato a presidente da República, José Serra. Tanto quanto sua filha, Verônica Serra, ao lado de vários outros atores importantes, sócios de Serra, mesmo que não formais. Há, aliás, um capítulo dedicado a isso: “Os sócios ocultos de Serra”, agora não mais ocultos.  

Não poderia ser ignorado, vírgula. Afinal, o livro mexe com as vísceras de um projeto político e econômico que envolvia a velha mídia de modo direto, pois ela fora, uma parte dela, beneficiária do processo de privatização, e não podia, portanto, usar critérios jornalísticos diante da publicação, critérios que, aliás, abandonou de há muito. Melhor calar. Melhor persistir em sua impressionante partidarização, em sua filiação tucana, ao menos filiação econômica. Melhor fazer de conta que nada acontecera. Melhor acreditar que, não noticiando, o fato não existe.

E vamos ser claros: a velha mídia tem identidade profunda com o pensamento neoliberal, e não por acaso sempre combateu o governo Lula e combate agora o governo da presidenta Dilma. Tem lado, isso não se pode negar. O autor, no capítulo “O indiciamento de Verônica Serra”, ao abordar a fantasiosa versão da campanha presidencial passada, quando a velha mídia falava nas supostas tentativas de violação do sigilo fiscal dos apoiadores do candidato tucano, diz que “pela primeira vez, de modo tão escancarado e comovente, a mídia revelou sua alma serrista”. Aqui, um reparo: não foi a primeira vez. Isso vem de longe.
A tática do silêncio, do encobrimento de fatos jornalísticos, que às vezes funciona, nesse caso foi um equívoco grave. Tornou o livro muito mais impactante. Foi uma correria às livrarias. Estas e o editor se viram em palpos de aranha para atender aos milhares de solicitações, logo que a primeira edição de 15 mil exemplares se esgotou. O silêncio dos senhores midiáticos foi parcialmente responsável por esse sucesso. Tiro no pé. E a velha mídia viu-se à beira de um ataque de nervos.

Sabe-se, afinal tudo transpira, que Serra chegou a ligar para um colunista, de sua amizade, e não são poucos os bons companheiros dele na velha mídia, para agradecer a defesa que o conhecido jornalista fizera dele mas, encarecidamente, pedia-lhe que não abordasse mais o assunto, nem para defendê-lo. Melhor calar.

Nas redações dos jornalões, as discussões se acirraram, o mesmo nas tevês, nas revistas. Afinal, todos estavam nus, no meio do estádio lotado, e a torcida gritando, pedindo gol. Os que resolveram noticiar alguma coisa o fizeram de forma envergonhada, e sem ir a fundo, e tentando encontrar algum meio de defender Serra, sua filha, seus parceiros. Diríamos, sem a pretensão de parafrasear ninguém: uma vergonha.   

As redes sociais, os blogs progressistas, CartaCapital, Terra Magazine, entre outros, já falaram muito sobre o livro, e bem. Encontraram um amplo espaço, aberto pelo estrondoso silêncio. Seria pretensioso e redundante fazer uma resenha. Registro apenas que é um trabalho jornalístico precioso, típico de um repórter aplicado, meticuloso, que mergulha atrás das provas, que documenta tudo, que vasculha, que não subestima os fatos, como deve ser todo bom jornalista. Não denuncia de maneira irresponsável, como tem acontecido tanto ultimamente. Não trabalha na linha do teste de hipóteses de um Ali Kamel. Claro que qualquer publicação está sujeita a críticas, mas inegavelmente esta tem muito mais méritos que defeitos.

Serra e seus bons companheiros estão pagando o preço de  ter subestimado o autor. Apressaram-se em atacá-lo durante a campanha, como se fossem vítimas, especialmente Serra e sua filha, e agora estão sentindo o peso da verdade, absolutamente documentada. Aparece ali toda a voracidade tucana de desmontar o Estado brasileiro, de vender as estatais a preço de banana, numa operação política e econômica balizada pelo Consenso de Washington, que levou nações pelo mundo afora à bancarrota, e seus povos à miséria. O livro, no entanto, não trabalha com esse específico enfoque.

O que quer, e consegue, é demonstrar como o tucanato, a família Serra na linha de frente, confundiu inteiramente os negócios públicos com os privados, privatizou o dinheiro público, subordinou os interesses nacionais aos grandes grupos econômicos interessados na privatização. E como recolheu avidamente as sobras polpudas desse processo, de modo direto, escandalosamente, como o demonstra a impressionante massa de documentos que o autor apresenta.

Verônica e seu marido, Alexandre Bourgeois, o quase-primo José Marin Preciado, Ricardo Sérgio de Oliveira, Vladimir Antonio Rioli foram os principais operadores de Serra. A quem não domina isso de perto, impressiona o jogo de prestidigitação financeira das operações, as viagens do dinheiro que sai do Brasil e volta, as mirabolantes operações de lavagem de dinheiro público, as incontáveis empresas offshore (ou empresas-camaleão), que servem a esse fim, as tentativas de apagar as pistas, agora desmascaradas pelo livro. O dinheiro público apropriado para fins de acúmulo patrimonial privado parece, como diria o autor, ter vida própria, está sempre mudando de nome, de endereço, de forma.

O esquema Serra parece ter alguma forma de magia: seus operadores tiram sempre da cartola uma maneira de esquentar o dinheiro conseguido ilegalmente. Foi, como diria a chamada de primeira página do livro, o maior assalto ao patrimônio público brasileiro. E documentado, fartamente documentado, provado. E há sempre, mais do que comprovada também, a presença de um personagem constante na vida dos escândalos brasileiros, Daniel Dantas, sócio de Verônica Serra.
Esta, aliás, devidamente indiciada pelo crime de violação do sigilo bancário de 60 milhões de brasileiros em janeiro de 2001, no apagar das luzes do governo Fernando Henrique Cardoso. A empresa Decidir do Brasil, nascida de uma sociedade em Miami entre Verônica Serra e sua xará Verônica Dantas, irmã e sócia do banqueiro Daniel Dantas, conseguira a proeza ao assinar um convênio com o Banco do Brasil.

Como se vê, o Estado brasileiro, então, estava devidamente privatizado, entregue aos interesses de uma família e seus operadores. Também a Iconexa S.A., empresa de Alexandre Bourgeois, o genro de Serra, foi indiciada em 2005 pelos crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de bens. A nossa velha mídia não viu nada disso. Não queria ver, fazia questão de não ver. Afinal, não se constituíam em fatos jornalísticos na sua ótica partidarizada. Atingia o coração do tucanato.

O esquema de corrupção montado por Serra e seus operadores não dispensou a ajuda de agentes da Polícia Federal nem de ex-membros da repressão política à época da ditadura. É certo que Serra mudou muito, deu um giro de 180 graus em suas posições políticas. Da Ação Popular ao PSDB foi um longo caminho percorrido, vindo da esquerda para a direita. Mas o livro mostra que ele se apropriou dos métodos da própria ditadura, e foi buscar ajuda entre aqueles que participaram do aparato repressivo contra a esquerda brasileira.

Assim, valeu-se não só de Marcelo Itagiba, ex-deputado federal e delegado federal, como também de Ênio Gomes Fontelle, conhecido como “Doutor Escuta”, ex-oficial da chamada comunidade de informações organizada pelos militares, mais precisamente do Serviço Nacional de Informações. Serra sempre foi muito bom na construção de dossiês, sempre teve gente especializada nesse trabalho. E por isso, para tentar esconder o que fazia, denunciava os adversários de cometer o crime que rotineiramente praticava.

Uma coisa é certa: estamos diante de um livro indispensável para a compreensão do que foram os anos de Fernando Henrique Cardoso e José Serra. Do que significou o neoliberalismo no Brasil. De como foi montada uma operação familiar para assaltar os cofres públicos. De como se fizeram fortunas fáceis. Afinal, não há experiência neoliberal na América Latina que não tenha se valido de tais expedientes. É uma prática intrínseca ao projeto.

O livro também deixa claro como a velha mídia brasileira se associou a essa empreitada, sem vacilações. Por questões políticas, ideológicas e, nenhuma dúvida, materiais. Houve tentativas de desqualificação do trabalho, anteriormente ou a posteriori, com a publicação já nas ruas. Equivocadas, de modo geral. Houve os que disseram tratar-se apenas de um trabalho decorrente das contradições, aliás nada desprezíveis, entre os tucanos Serra e Aécio. Se estas contaram, não foram essenciais, pois o autor se dedicava ao texto havia mais de uma década.

Por cima de tudo isso, e desmontando todas as tentativas de desqualificação, o livro se constitui num tapa na cara dos que assim agiram, um soco no estômago. Concorde-se ou não com ele, concorde-se no todo ou em parte, veio para ficar. Torna-se uma referência essencial quando quisermos visitar a década perdida, a dos anos 1990. Perdida para a maioria. Ganha para uns poucos, aqueles que protagonizaram o maior assalto ao patrimônio público de nossa história.  

Emiliano José é jornalista, escritor, deputado federal (PT/BA)
 

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