Artigo de 22.08.2011
Corrupção! Essa é a palavra-chave que tem pautado o noticiário político
nacional. Qualquer pessoa que abre as páginas dos jornalões e das
revistas semanais de maior circulação no país, ou que acompanha o
noticiário televisivo, não tem como fugir da enxurrada de matérias
jornalísticas e textos de opinião sobre o tema. A corrupção foi guindada
à condição de questão maior da política brasileira nesse começo de
governo Dilma, e a grande mídia parece muito empenhada em insuflar essa
agenda.
Tão empenhada que até começou a empregar a expressão “faxina” associada a
uma suposta luta contra a corrupção que a presidenta “deveria” liderar.
Ainda que o governo resista a adotar tal metáfora de gosto duvidoso, e
de memória dolorosa, ele está sendo chamado a responder incessantemente
às demandas dessa pauta.
Tem mais. O tema da corrupção carrega o potencial de produzir uma
sensação de perplexidade entre o público de orientação progressista. Tal
perplexidade é até compreensível, mas ela é muito perigosa e para ser
superada deve ser antes bem compreendida. A perplexidade é uma condição
marcada pela incapacidade de se tomar uma decisão, incapacidade mesmo de
agir, de tomar partido, etc. Perante o tema da corrupção, o cidadão
progressista, ou de esquerda, se me permitem o uso do termo, tem
frequentemente uma reação imediata de repúdio. Ora, em seu sentido mais
corrente, o termo denota a roubalheira, a apropriação privada de
patrimônio público, o uso de cargo público para enriquecimento privado,
tráfico de influência, troca de favores etc. Essa lista poderia se
estender bastante. É claro que todo mundo que é a favor de uma maior
igualdade, de mais justiça social, não pode ser a favor do
desvirtuamento da máquina e recursos estatais, que são os meios
precípuos para se promover tais fins.
O problema de sermos tomados pela perplexidade é não percebermos a
natureza de quem faz o agendamento: a grande mídia. A menos de um ano
atrás a mesma mídia agia em bloco como partido político bombardeando a
candidatura da atual presidenta, misturando fatos reais a ilações
falaciosas e, mais importante, rasgando todos os manuais de boa conduta
jornalística. Contra o candidato da oposição, quase nada foi aventado,
com raríssimas exceções e mesmo assim já no final da campanha.
O estelionato eleitoral foi evitado pelo voto popular, mas os órgãos da
grande mídia, de cá para lá, continuam os mesmos, com os mesmos poucos
donos, os mesmos editores e colunistas conservadores, os mesmo
jornalistas. E esse constitui o principal problema da democracia
brasileira atual: a corrupção do espaço público.
A grande mídia ainda é responsável em boa medida pela informação da
maior parte da população, e, dessa maneira, é influente na formação da
opinião pública. Por mais que os grandes jornais tenham perdido um pouco
de seu poder de agendamento, que o mito dos “formadores de opinião” da
classe média tenha sido desmontado na prática, ainda resta a mídia
televisiva, que alcança toda a sociedade. E a classe média continua sob a
influência diuturna das revistas e jornais dos grandes conglomerados de
mídia brasileiros. Temos aqui uma tensão estrutural em uma sociedade
que ao mesmo tempo democrática e capitalista.
A propriedade privada dos meios de comunicação, particularmente em seu
formato oligopolizado, conduz à usurpação do espaço público em prol dos
interesses dos poucos grupos que detém os meios. Na prática, os
proprietários tem poder de veto e de agenda sobre tudo o que é informado
ao público. É claro que poderíamos imaginar hipoteticamente situações
em que o conflito de interesses e de posições ideológicas entre
diferentes grupos dentro do oligopólio abra espaço para certa
diversidade de opiniões.
Infelizmente, não é isso que se observa em nosso país. Pelo contrário,
há um grande alinhamento ideológico entre os principais grupos de mídia,
a despeito da competição entre eles em diferentes mercados, como
provimento de serviços de internet, TV a cabo etc. Na última eleição
agiram de fato como bloco de oposição, comportamento que levou alguns
comentaristas a apelida-los coletivamente de “partido da mídia”.
O problema é que finda a eleição, as pessoas parecem que se esqueceram
da terrível tragédia que quase se consumou e passaram a tratar a grande
mídia como fiel sustentáculo do debate público democrático. Não é! Abram
as páginas dos principais jornais e revistas semanais de nosso país e
verão que ali geralmente só há um lado da história, somente um pequeno
punhado de ideologias afins e silêncios retumbantes. Políticos que são
criticados veementemente e outros contra os quais nada se apura.
Ou seja, a corrupção do espaço público é o calcanhar de Aquiles da
democracia brasileira, e esse é um calcanhar enfraquecido, luxado,
distendido. Sem um sistema de informação plural e responsável não
teremos uma formação saudável da opinião pública. Sem uma opinião
pública bem informada como poderemos esperar o aprimoramento das
instituições, o avanço das questões normativas que se colocam
constantemente perante uma sociedade democrática (proibição do porte de
armas, aborto, eutanásia, bioética etc) e mesmo a eleição de melhores
quadros de representantes?
Mas o noticiário político, por razões óbvias de conflito de interesses, é
totalmente impermeável a esse problema fundamental. Pior, toda vez que
alguma associação, partido ou político se aventa a criticar o oligopólio
midiático, são imediatamente acusados de violarem o princípio
fundamental da liberdade de expressão.
Aqui estamos, mais de seis meses se passaram desde a posse da nova
presidenta. A grande mídia continua unida, agora sob a égide do combate à
corrupção. Querem agendar o debate político, e, claro, agendar o
próprio executivo. Trata-se de fato de uma armadilha, pois é agenda
eminentemente negativa e com grande potencial de corroer a base de
sustentação partidária do executivo no congresso. A presidenta Dilma
parece já ter percebido que está sendo atraída para tal armadilha. Sua
resposta tem sido não ignorar a pauta completamente, e ao mesmo tempo
tentar criar uma agenda positiva de novos programas governamentais e
iniciativas de desenvolvimento. A questão é: qual a probabilidade de tal
estratégia funcionar se a questão principal, que é a corrupção do
espaço público sob o oligopólio da grande mídia, não é atacada? E nesse
tocante o governo parece estar na defensiva, pois desde que tomou posse
Dilma não manifestou vontade de trabalhar para mudar esse calamitoso
estado de coisas.
Para além do problema conjuntural, devemos perguntar até que ponto a
democracia brasileira pode continuar se aprimorando se no cerne de seu
funcionamento temos um problema dessa monta. Seria ele intratável?
Estaríamos fadados a presenciar a fascistização crescente da classe
média, logo agora que ela se abre para receber um enorme contingente de
brasileiros? Será que a internet, com seu grande potencial de
pluralização de fontes de informação, pode nos salvar? Essas são
questões fundamentais para o futuro de nosso país. Infelizmente, pouca
gente parece interessada em refletir sobre elas.
João Feres Júnior | Instituto de
Estudos Sociais e Políticos – IESP | Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – UERJ | Centro de Ciências Jurídicas e Políticas – UNIRIO
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