Vista a partir de retinas embaçadas de cansaço ou ideologia, a
transformação social parece uma impossibilidade aprisionada em seus
próprios termos: as coisas não mudam, se as coisas não mudarem; e se as
coisas não mudarem, as coisas não mudam...
O sistema de produção baseado na mercadoria cria e apodrece previamente
as pontes das quais depende a travessia para uma sociedade justa e
virtuosa.
Diz a concepção materialista da história que o lacre da fatalidade se
rompe no pulo do gato das sinapses entre condições objetivas e
subjetivas. Mas a dialética dura das transformações não é uma mecânica
hidráulica. Não é maquinaria lubrificada, autopropelida a toque de
botão.
A história é um labirinto de contradições, uma geringonça que emperra e
se arrasta, desperdiça energia e cospe parafusos por onde passa. Para
surgir um 'Lula' desse emaranhado tem que sacudir muito a estrutura.
Greves, levantes, porradas, descaminhos etc. Dói. Demora. Décadas, às
vezes séculos.
Uma liderança desse tipo - e aquelas ao seu redor; 'uma quadrilha', diz o
vulgo conservador - constitui um patrimônio inestimável. Mesmo assim, é
só o começo; fica longe do resolvido.
A 'pureza' política pretendida por alguns juízes do STF é pouco mais que
uma bobagem de tanga disfarçada de toga diante do cipoal da história.
A cada avanço, não regredir já é um feito Quarenta milhões passaram a
respirar ares de consumo e cidadania após 11 anos de governos
progressistas no país. É uma espécie de pré-sal de possibilidades
emancipadoras. Como evitar que essa riqueza venha a se perder nesse
sorvedouro de futuro escavado por júniores & virgílios ?
Lula talvez tenha intuído o ponto de esgotamento do cardume ao final da
piracema histórica impulsionada pelos grandes levantes operários do ABC
paulista, nos anos 70/80.
Ao final de uma piracema, a 'rodada' do conjunto exaurido leva uma parte
à morte; outra se deixa arrastar por correntezas incontroláveis; um
pedaço sucumbe a predadores ferozes.
Lula precisava de um novo e gigantesco laboratório forrado de desafios e
recursos para gerar contracorrentes, revigorar, sacudir e renovar a
piracema progressista brasileira.
São Paulo tem o tamanho da alavanca necessária para fazer tudo isso e
irradiar impulsos talvez tão fortes quanto aqueles derivados das
assembleias históricas que dirigiu no estádio da Vila Euclides, em São
Bernardo do Campo.
Haddad, os intelectuais engajados, os movimentos sociais e as lideranças
mais experientes do campo progressista terão que movê-la a partir de
agora e pelos próximos quatro anos.
Está em jogo o próximo ciclo de mudanças da sociedade brasileira.
Colunistas sabichões dizem que 'se isolarmos São Paulo', Lula fracassou.
Eles não sabem do que estão falando; apenas ruminam líquidos biliares da
derrota na forma de desculpas para a explícita opção pela água parada
do elitismo.
Topam um Serra cercado de malafaias & telhadas.
Mas abjuram a correnteza de um PT - 'sujo pela história', na sua ótica.
Testam versões para abduzir a derrota esmagadora da água podre na
figura do delfim decaído, José Serra, em São Paulo.
Na Folha desta 3ª feira as rugas das noites mal dormidas recebem o
pancake daquilo que se anuncia como sendo "uma onda oposicionista que
mudou a cara do poder no Brasil".
A manchete traz a marca do jornalismo conservador cada vez mais ancorado
em 'pegadinhas' à altura dos petizes que brincam nesse tanquinho de
areia tucano.
Desta vez, a Folha induz o leitor ao erro de considerar 'oposicionista'
como de oposição ao governo federal e ao PT. Na verdade, o texto trata
das reviravoltas em que prefeitos e seus candidatos foram batidos por
adversários locais.
Mas a isenção se dispensa de fornecer ao leitor o conjunto abrangente que relativiza a parte privilegiada. Aos fatos então:
a) o PT foi o partido que fez o maior número de prefeitos (15) no
segmento de cidades grandes, com 200 mil a um milhão de habitantes;
b) o PT vai governar 25% do eleitorado nesse segmento;
c) juntos, os partidos da base federal, PMDB, PSB e PDT, fizeram outros 20 prefeitos nessa categoria das grandes cidades;
d) vão governar 26% desse eleitorado;
d) no conjunto, a base federal terá sob administração mais da metade dos eleitores desses municípios.
Os colunistas da Folha exageram nas cambalhotas para induzir o leitor a
'enxergar' como foi horrível o desempenho do partido, 'se excluirmos',
dizem eles, a 'vitória isolada' em SP.
Em eleições anteriores, o esforço era para decepar o Nordeste 'atrasado'
do mapa relevante da política nacional e, desse modo, rebaixar a
crescente hegemonia do PT.
Agora que o PT refluiu de fato em capitais do Norte e Nordeste (saldo
esse que inspira preocupação) é a vez de desdenhar da vitória na praça
paulistana, que reúne 6% da demografia nacional e 11% do PIB.
A narrativa da vitória 'isolada', como se São Paulo fora um ponto fora
da curva no deserto eleitoral petista, não é verdadeira sob quaisquer
critérios.
Sozinho, o PT administrará o maior contingente de eleitores de todo o
país (1/5 do total) e a maior fatia de orçamentos municipais (22%).
A vitória em SP tampouco foi um feito solitário no estado-sede do PSDB.
Bombam a derrota em Diadema, mas além da capital, o partido manteve e
reforçou o chamado cinturão vermelho. Venceu em Guarulhos, Santo André,
Mauá, Jundiaí, S.José dos Campos, Osasco e São Bernardo.
Nos próximos quatro anos, com uma eleição presidencial pelo meio, o PT
governará 45% do eleitorado do Estado de SP, contra 19,3% do PSDB.
O cardume subsiste numeroso. O que se discute é outra coisa: a
qualidade, a força e a direção do impulso que irá dotá-lo de fôlego
transformador nos próximos anos. É disso que se trata. E isso é muito
mais sério do que as cambalhotas da razão nos tanquinhos de areia do
dispositivo midiático conservador.
Saul Leblon
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