Em uma ação espetaculosa, quatro carros militares fecharam a frente do
Fiat 147, nas cercanias de uma praça na cidade de Passo Fundo, no norte
gaúcho. Armados com fuzis, os militares arrancaram de dentro do carro o
motorista que, aos berros e empurrões, acabou preso e jogado dentro de
um veículo verde-oliva.
O engenheiro e professor universitário argentino Carlos Alfredo Claret, vítima da operação Condor |
Sem saber, o engenheiro e professor universitário argentino Carlos
Alfredo Claret se tornava, naquele início de tarde do dia 12 de setembro
de 1978, em mais uma vítima da Operação Condor – que uniu ditaduras do
Cone Sul no combate a movimentos de esquerda. Sua prisão é prova
importante de como os ditadores trabalhavam em conjunto, sem tomar
ciência de fronteiras, para sequestrar os considerados inimigos de
Estado.
A prisão de Claret ocorreu dois meses antes do sequestro dos uruguais
Universindo Dias e Lilian Celiberti, em Porto Alegre, também por
agentes brasileiros. “A facilidade com que isso foi feito mostra que as
forças de segurança tinham certeza da impunidade. O Brasil sempre teve o
papel protagônico na Operação Condor, mas sempre com o cuidado de não
deixar impressões digitais”, avalia Jair Krischke, presidente do
Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH).
Depois de um mês preso e torturado na sede Superintendência da Polícia
Federal, em Porto Alegre, Claret acabou solto por pressão de militantes
dos direitos humanos, igreja católica e imprensa, e se exilou na
Suécia, onde vive até hoje. De passagem pelo Brasil, o argentino contou
sua história pouco conhecida nesta segunda-feira 10, na sede do MJDH,
na capital gaúcha.
“Há uma centena de histórias que nunca foram contadas. Alguns se salvaram, outros não”, comentou Claret.
Nascido em Entre Rios e formado engenheiro mecânico em 1971, Claret
passou a ser perseguido pela ditadura argentina, sendo expulso da
Universidade de Rio Cuarto, onde era professor e decano. Em 1976, um
amigo próximo, integrante da juventude peronista, como ele, acabou
assassinado pelas forças de repressão.
O engenheiro optou, então, por fugir com a mulher e um casal de filhos
para o Brasil e se instalou em Santos (SP), antes de rumar para Passo
Fundo, onde começou a trabalhar em uma fábrica de máquinas agrícolas,
sua especialidade. “Eu não tinha regularizado meus documentos. Era
impossível. Mas consegui uma carteira de trabalho, que era mais fácil
de se obter, e a empresa me empregou.”
Ao mesmo tempo, do lado argentino, a repressão aumentava. Claret, a
cada três meses, tinha que levar a mulher e os filhos à fronteira para
renovar o visto de turistas no Brasil. “Na fronteira caía muita gente, e
nós tínhamos de ir com as crianças.”
O argentino procurou o consulado em Porto Alegre, em maio de 1978, para
regularizar sua situação, solicitando uma “certidão de boa conduta”,
documento nunca emitido.
Quatro meses depois, em Passo Fundo, viu uma movimentação estranha na
empresa. “Me disseram que era um controle de rotina. As autoridades
pediram para ver a documentação dos estrangeiros. Eu tinha outros
colegas, como um do Uruguai, que também estava ilegal, apenas com o
visto de turista.”
Mas foi quando deixava a empresa, ao meio dia de 12 de setembro de
1978, que foi abordado pelos militares. “Dois carros na frente, dois
atrás. Me mandaram colocar as mãos na cabeça. Ninguém me explicava o que
estava acontecendo e eu sempre com um fuzil encostado na cabeça.”
Claret foi levado ao 3º Esquadrão do 5º Regimento de Cavalaria
Mecanizado, na mesma cidade, onde foi colocado em um quarto,
incomunicável. Dois dias depois recebeu a visita de um inspetor da
Polícia Federal, que o conduziria até Porto Alegre.
“Me mandaram ficar na parte de trás de um Fusca, com a cabeça baixa. O
comissário me colocou um capuz e fez uma brincadeira de, no mínimo, mau
gosto. Ele disse: ‘Agora vamos para a Argentina’”.
Em Porto Alegre, ficou isolado na PF, situada na época na rua Paraná,
número 69. “Entramos em uma garagem onde tinha umas dez celas. Me
colocaram na primeira da direita e tiraram todos os outros presos ao
redor. Nunca tive contato com nenhum deles.”
Depois de dois dias isolado, Claret foi levado para o interrogatório,
quando questionado sobre seus contatos, quem conhecia no Brasil e sua
participação na resistência argentina. “Foi quando me disseram: ‘Temos
tua família e todo o tempo do mundo’”.
Por dez dias de muita pressão psicológica, o engenheiro foi obrigado a
escrever várias vezes o mesmo relato de suas ligações na Argentina e no
Brasil. No final deste período, o tiraram da cela e o mandaram tomar
banho: dia da primeira sessão de choques. “Eu estava nu em uma cela,
quando entrou um médico. Ele começou a tirar fotos do meu corpo e eu
perguntei o porquê. ‘Não queremos que os corpos se confundam’, ele
disse.”
O preso foi levado, então ao gabinete do chefe da PF, onde “iria
encontrar alguém importante”. No dia 29 de setembro de 1978, Claret foi
visitado pelo então representante no Brasil do Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Guy Prim. “A partir daí, mudou a
história.”
Seu paradeiro só foi conhecido porque um amigo testemunhou sua captura e
acionou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos. A partir daí, uma
cadeia de informações tomou origem, divulgando sua prisão, inclusive
com notas na imprensa e participação da Confederação Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB).
Claret, a muher e os filhos foram levados para o Rio de Janeiro, de onde partiram para a Suécia em 12 de outibro de 1978.
“Eu era da juventude peronista e trabalhava numa universidade”, conta Claret, o que seria o motivo para sua captura.
Para o professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Jorge
Christian Fernández, estudioso do caso, a melhor hipótese para a prisão
de Claret é que ele tenha sido confundido ou que as forças de repressão
acreditaram que ele fosse um montonero – organização político-militar
que, desde a Copa de 1978, treinava para fazer operações militares na
Argentina a partir do Brasil e das fronteiras do Paraguai e Uruguai.
Os montoneros acreditavam que o governo argentino estava caindo em suas
estruturas e que, se chegassem de fora do país, conseguiriam uma
insurreição. Isso não aconteceu. A ditadura argentina estava muito bem
informada dos planos dos montoneros, já que tinha agentes infiltrados na
organização.
“É bem possível que o Claret tenha entrado às avessas nesse caso.
Alguém calculou que ele pudesse ter algo com isso. Devem ter analisado
que ele era um membro da juventude peronista desaparecido da Argentina
por mais de dois anos e estimaram que ele tinha passado para a
guerrilha”, estipula Fernández.
“Eu apenas era da geração que queria mudar o mundo”, comenta Claret.
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