Artigo: Lei, provas e a Teoria do Domínio do Fato - Por João Antonio
O julgamento da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que em sua função típica é um tribunal guardião da autoridade constitucional, e que nesta ação atua como instância de competência original, suscitou um debate que merece a atenção de todos os operadores do direito. Trata-se da relação entre lei, provas no processo penal e a Teoria do Domínio do Fato.
A Teoria do Domínio do Fato teve sua origem na Alemanha a partir dos estudos do filósofo Hans Welzel que, em 1939, ao criar o finalismo, introduziu a idéia da teoria em estudo no concurso de pessoas, adotando como autor aquele que tem o controle final do fato. No Brasil, esta teoria está disciplinada em nosso ordenamento jurídico no Código Penal, artigos 29 a 31 e 62. O artigo 29 do Código Penal prevê: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”.
Damásio de Jesus, analisando os crimes praticados em concurso de pessoas, afirma que “o Código Penal adotou a teoria restritiva, já que os artigos 29 e 62 fazem distinção entre autor e partícipe”. Assim, o artigo 62,lV agrava a pena em relação ao agente que “executa o crime, ou nele participa, mediante paga ou promessa de recompensa. Quem executa o crime é autor; quem induz, instiga ou auxilia considera-se partícipe. Isso, entretanto, não resolve certos problemas, como o da autoria mediata, em que o sujeito se vale de outrem para cometer o delito”.
É aí que se coloca a necessidade da Teoria do Domínio do Fato, que complementa a Teoria Restritiva na busca de solução adequada para os casos concretos. Assim, a Teoria do Domínio do Fato emprega critério objetivo-subjetivo, amplia o conceito de autoria e define que autor é quem detém o controle final do fato criminoso, o domínio finalístico do decurso do crime, bem como o poder de decidir sobre sua prática, sua interrupção e circunstância (tempo, local, forma etc).
Para melhor atender ao jus puniendi (direito de punir) do Estado, surge a Teoria do Domínio do Fato, que passa a aferir a conduta do indivíduo não apenas sob o aspecto objetivo, mas dando valor à sua contribuição subjetiva para a ofensa ao bem, uma teoria que se relaciona à conduta e não ao resultado e visa punir aquele que está “por trás”, ou seja, o autor intelectual do crime.
O Brasil, sabiamente, para enfrentar o sujeito intelectual de um crime, a exemplo de outros Estados, também ampliou o seu conceito de autoria ao positivar a teoria objetiva-subjetiva no artigo 62,l do Código Penal, que reza: - “A pena será ainda agravada em relação ao agente que:
I - promove, ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes; (Redação dada pela Lei nº 7.209 , de 11.7.1984)”.
Como se vê desde 1984 o nosso Código Penal adotou o conceito alemão expresso na Teoria do Domínio do Fato e positivado no citado artigo. Portanto, não há que se falar em invencionismo dos ministros do STF ao citar esta teoria em seus julgados, muito menos criticá-los pelo fato de buscarem fundamentação jurídica para, com base em conceito amplificado de autoria, punir aqueles que, mesmo não sendo os executores do crime - autores imediatos -, “agindo por trás”, foram fundamentais para a concretização de um determinado fato criminoso. É o próprio ordenamento jurídico pátrio que confere legitimidade a todos os que desejam fundamentar suas opiniões e, no caso dos juízes, suas sentenças, utilizando-se da Teoria do Domínio do Fato. Portanto, o que se conclui é que esta teoria, também chamada de objetiva-subjetiva, integra o sistema normativo pátrio. Não há o que questionar!
Ocorre que na função de julgar, por mais que o direito positivo imponha o domínio da técnica jurídica para tornar esta função do magistrado a mais isenta possível, os juízes não se limitam a uma pretensa objetividade científica. Como qualquer outro membro da comunidade jurídica, os magistrados atuam com suas vontades, valores morais, preconceitos, medos, vaidades, ideologias, enfim, por mais que se esforcem não conseguem se livrar das questões valorativas inerentes a qualquer fato jurídico.
Outra questão que merece destaque ao analisarmos a subjetividade na teoria citada é a constatação de que uma lei, após sua inserção no ordenamento jurídico, se distancia da vontade do legislador. A partir do momento em que adentra o ordenamento jurídico, o que conta, no momento de sua aplicabilidade, é a sua interpretação, o que implica em estabelecer uma estreita conexão valorativa entre fato e preceito legal adequado, levando em consideração fatores diversos que influenciam cada circunstância fática. É aí que as provas ganham relevância. Portanto, o que se questiona na aplicabilidade desta teoria é a enorme margem de subjetividade do magistrado na hora de analisar provas que formam a convicção do juízo diante de um fato concreto.
Tomemos como exemplo um caso hipotético: um dono de uma empresa que necessita ampliar o número de vendedores para aumentar suas vendas e auferir maior lucratividade nos seus negócios. Para incentivar seus vendedores, estabelece uma comissão em cima de vendas realizadas. Os vendedores, em conluio com o contador da empresa, decidem por conta e risco burlar leis tributárias e aumentar seus rendimentos. Descoberta a conduta ilícita, é processada uma ação em juízo com o objetivo de punir os responsáveis.
É possível concluir que o dono, só pelo fato de ter a obrigação e a responsabilidade objetiva pela administração da empresa, com base na Teoria do Domínio do Fato, deva ser responsabilizado pela conduta delitiva? Digamos que um dos vendedores, em depoimento no momento do inquérito ou mesmo no decurso do processo, afirme que o dono da empresa sabia da conduta ilícita, é possível, por conta da sua função de dirigente principal da empresa, inferir o domínio do fato e concluir pela condenação do empresário com base neste depoimento? Na hipótese aqui relatada, em caso de condenação do empresário, se cometeria uma enorme injustiça.
O que se considera para imputar uma conduta criminosa a um agente é a intenção, a finalidade perseguida pelo autor - já incluindo aqui o conceito ampliado de autoria com base na teoria objetiva-subjetiva. Assim, o que deve ficar claro é que a decisão de aplicar a Teoria do Domínio do Fato não diminui em nada a relatividade das provas testemunhais, como sempre foi no processo penal brasileiro. Para que não se cometam injustiças, em qualquer julgado que envolve reputação e a liberdade de outrem, ao expedir uma sentença o juiz não pode se utilizar apenas de provas subjetivas para formar sua convicção. É por isso que, mesmo em se tratando de imputação criminosa a um réu pela sua participação intelectual, o sujeito que está “por trás” de um delito, são necessárias provas objetivas, materiais; sem elas, qualquer julgado ficará à mercê de opiniões valorativas por convicções ideológicas, pressões, medos e convicções morais - ferindo de morte o princípio da segurança jurídica.
Em se tratando de imputação de conduta criminosa a agentes políticos, como no caso da Ação Penal 470 e outras, o zelo terá que ser ainda maior. Sabidamente, a política é um instrumento de disputa de poder onde os limites da ação de cada um dos agentes envolvidos varia a depender da índole de cada envolvido. A regra mostra que o “vale tudo” é o que impera.
Não conheço os autos da ação 470. Levando em consideração o que veio a público, o que dá para inferir é uma super valorização de provas testemunhais e, como disse antes, se tais provas por si já carregam uma enorme subjetividade, imagina no caso do chamado “mensalão”, onde afloravam as disputas ideológicas, de interesses econômicos, vaidades. Temo que ao uniformizar condutas de pessoas com interesses tão distintos e generalizar sanções, o Supremo Tribunal Federal (STF) possa cometer irreversíveis injustiças.
Espero que o julgamento da ação 470 sirva para aperfeiçoar o Estado Democrático Brasileiro e não como o momento de acerto de contas ideológicas entre aqueles que foram poder no passado e o atual partido político que comanda o Brasil. Razões ideológicas para isso não faltariam!
João Antonio é advogado e deputado estadual
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