O
jornalista Luiz Eduardo Merlino (à esquerda) morreu em 1971 devido a
atos de tortura comandados e praticados pelo coronel Ustra nas
dependências do DOI-CODI, em São Paulo
A juíza Claudia de Lima Menge (sentença, na íntegra, abaixo) condenou o
coronel Alberto Brilhante Ustra a indenizar por danos morais família
do jornalista Luiz Eduardo da Rocha Merlino, falecido em 19 de julho
de 1971, quando estava preso no DOI-CODI (Destacamento de Operações e
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, órgão subordinado
ao exército), em São Paulo.
Merlino morreu em decorrência de espancamentos e atos outros de tortura comandados e praticados diretamente por Ustra.
“O ser humano é inviolável. É isso que importa. É isso que a sentença
diz”, afirma o jurista e procurador de Justiça de São Paulo Marcio
Sotelo Felippe. ” Que aqueles que detêm o poder do Estado não esqueçam
disso, porque lhes será cobrado.”
O artigo Punir a tortura é direito e dever da humanidade, de Marcio Sotelo Felippe,
publicado pelo Viomundo, é citado na sentença da juíza Claudia de Lima
Menge: “É a blogosfera fazendo jurisprudência! Um marco”.
* * *
SENTENÇA NA ÍNTEGRA
VISTOS. ANGELA MARIA MENDES DE ALMEIDA e REGINA MARIA MERLINO DIAS DE ALMEIDA, com qualificação na inicial, propuseram AÇÃO CONDENATÓRIA contra CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, também qualificado, sob fundamento de que foram, respectivamente, companheira e irmã de LUIZ EDUARDO DA ROCHA MERLINO,
jornalista falecido em 19/7/1971, quando estava preso no DOI-CODI
(Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa
Interna, órgão subordinado ao exército) em São Paulo, em decorrência
de espancamentos e atos outros de tortura comandados e praticados
diretamente pelo requerido. Fazem relato da participação da primeira
autora e de Luiz Eduardo no movimento estudantil no final da década de
60 e das atividades desenvolvidas como integrantes do Partido Operário
Comunista, clandestinos desde 1968, depois residentes por um tempo na
França.
Em 15/7/1971, em
visita a sua família em Santos, Luiz Eduardo foi levado a força, sob a
mira de pesado armamento, por agentes do DOI- CODI. Nos quatro dias
subsequentes, militares mantiveram a família, inclusive a coautora
Regina, sob constante vigilância, mas sem notícias sobre Luiz Eduardo,
até que noticiado seu falecimento, por suicídio. Foi possível,
porém, constatar que ele fora vítima de tortura, tendo em conta as
condições em que se apresentava o corpo.
Diversa, porém, foi a versão apresentada pelos agentes do DOPS
(Departamento de Ordem Política e Social): quando era transportado para o
Rio Grande do Sul, para lá reconhecer colegas militantes, durante uma
parada na proximidades de Jacupiranga, Luiz Eduardo teria se jogado à
frente de um carro que trafegava pela rodovia e fora atropelado. Este
o conteúdo lançado no atestado de óbito pelos técnicos no IML. Tempos
depois, outras pessoas que estiveram no DOI-CODI na mesma época
trouxeram relato de que Luiz Eduardo fora espancado durante 24 horas
seguidas no “pau-de-arara” e, como consequência, passou a apresentar
dores nas pernas, que, depois, se constatou ser sintoma de complicações
circulatórias severas, que redundaram na morte dele, por falta de
atendimento médico adequado e excesso nos atos praticados pelo réu.
A coautora Maria Helena estava na França quando recebeu a notícia da
morte de seu companheiro. Mesmo depois do fatídico evento, a família foi
mantida sob constante vigilância por agentes do exército. Os
espancamentos de Luiz Eduardo se deram sob supervisão, comando e, por
vezes, por ato direto do requerido, que, então, era comandante do
DOI-CODI e da operação OBAN (Operação Bandeirante, como foi denominado o
centro de informações e investigações montado pelo exército em 1969,
voltado a coordenar e integrar as ações dos órgãos de combate às o
rganizações armadas de esquerda).
Sofreram danos morais como decorrência de referidos atos de tortura
praticados pelo réu e que resultaram na morte daquele que era,
respectivamente, companheiro e irmão. Tecem considerações acerca da
imprescritibilidade das pretensões relacionadas a afronta aos direitos
da personalidade e aos direitos humanos. Pedem a procedência da ação
para o fim de ser o réu condenado ao pagamento de indenização por danos
morais. Veio a inicial instruída com os documentos de fls. 29/132,
entre eles cópias de depoimentos testemunhais, decisões judiciais e
notícias jornalísticas. Em contestação (fls. 141/159), invoca o
requerido preliminares de falta de pressuposto processual,
incompetência absoluta, ilegitimidade passiva, falta de interesse de
agir e impossibilidade jurídica do pedido. No mérito, argumenta ter
sido a pretensão atingida pela prescrição e nega participação nos atos
descritos, que não encontram substrato no conteúdo do atestado de
óbito do jornalista. Sustenta serem inverídicos os relatos feitos por
presos políticos. Pugna pela improcedência do pedido e junta
documentos. Seguiu-se manifestação das autoras (fls. 658/665) e, por
decisão de fls. 670/671, afastadas as preliminares, foi deferida a
produção de prova oral. Contra referida decisão tirou o réu agravo de
instrumento (fls. 686/699), pendente de julgamento. Consistiu a
instrução da inquirição de sete testemunhas (fls. 756 e 789/848, 961).
Encerrada referida fase processual, apresentaram as partes alegações
finais, sob a forma de memoriais. É o relatório.
Fundamento e DECIDO.
I. É objetivo das autoras condenação ao pagamento de indenização por
danos morais decorrentes dos atos por ele praticados com excesso e abuso
de poder, na qualidade de membro do Exército, comandante do DOI-CODI e
da operação OBAN, consistentes em comandar tortura e, por vezes, dela
participar diretamente, da qual resultou a morte de Luiz Eduardo da
Rocha Merlino, que foi, respectivamente, companheiro e irmão delas.
Resiste o réu a dita pretensão, forte quanto a estar prescrita a
pretensão, de resto não praticados os atos que lhe são imputados.
II. Superado, por decisão saneadora, o enfrentamento das questões
processuais, oportuno mencionar que o litígio em análise não sofre
ingerência da anistia contemplada na Lei nº 6.683/79, de âmbito
exclusivamente penal, como de resto reconheceu o Supremo Tribunal
Federal ao apreciar a reclamação arguida pelo requerido por suposta
violação à decisão da Corte no ADPF 153, em razão de decisão proferida
nestes autos: “não há identidade entre o caso apresentado e o decidido
por esta Casa de Justiça do julgamento da APDF 153” no sentido da
“integração da anistia da Lei de 1979 na nova ordem constitucional. Lei
de anistia, contudo, que não trata da responsabilidade civil pelos
atos praticados no chamado ‘período de exceção’.
E é certo que a anistia como causa de extinção da punibilidade e
focada categoria de direito penal não implica a imediata exclusão do
ilícito civil e sua consequente repercussão indenizatória.” (fls.
930/931). Não é de olvidar, porém, que até mesmo a anistia assim
referendada pela Corte Suprema não está infensa a discussões, tendo em
conta subsequente julgamento proferido pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), em que o
Brasil foi condenado pelo desaparecimento de militantes na guerrilha
do Araguaia, enquadrados os fatos como crimes contra a humanidade e
declarados imprescritíveis. No ponto, ostenta especial relevância
considerar que a atual configuração inter-relacionada dos diversos
países, integrantes de organizações internacionais voltadas para fins
políticos, econômicos e sociais, e a intensa movimentação de pessoas
entre as várias nações, faz com que a regulamentação acerca do respeito
a os direitos humanos e das consequências dos atos praticados afronta
deles transcenda largamente a posição soberana dos Estados para se
basear, isto sim, em cada pessoa, como titular de direitos essenciais,
independentemente da nacionalidade e do local em que esteja. Daí a
relevância dos tratados internacionais acerca de direitos humanos, vez
que como direitos essenciais não podem sofrer injunções ou
considerações locais, com base no poder constituinte, quer originário,
quer derivado. Como ensina Marcio Sotelo Felippe (www.viomundo.com.br),
“além do fenômeno da convencionalidade sustentado pelo princípio da
‘pacta sunt servanda’, há normas de Direito Internacional que têm a
característica da cogência. Após Nuremberg se reconhece que normas do
Direito Internacional dos Direitos Humanos são cogentes. Derivadas dos
costumes e de outras fontes formais do Direito, independem, para sua
eficácia, da vontade dos sujeitos envolvidos numa relação jurídica. A
racionalidade disto é clara. Trata-se de um imperativo moral
transformado em axioma jurídico: como poderia a proteção da vida e dos
direitos básicos da pessoa humana depender de um ato de vontade, em
qualquer plano do fenômeno jurídico?” (…) “A ideia de que somente normas
positivadas por meio de determinados procedimentos formais constituem
o Direito independentemente de juízo de valor deve ser considerada
hoje uma etapa primitiva do desenvolvimento do fenômeno jurídico. Isto
porque a dignidade da pessoa humana deixou de ser postulado
filosófico para tornar-se axioma jurídico. Está na raiz dos
instrumentos internacionais de defesa dos Direitos Humanos que se
seguiram à barbárie nazista: a Declaração Universal de 1948, o Pacto
de Direitos Civis e Políticos, a Declaração de Direitos Econômicos e
Sociais, a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e
contra a Humanidade, de 1968, Convenção contra a Tortura, etc.” Desde
1992, o Brasil ratificou a Convenção Internacional de Direitos
Humanos e, em 1998, reconheceu a competência da Corte Interamericana
de Direitos Humanos para o trato do tema. Em recente julgamento,
referida Corte reconheceu a invalidade da Lei da Anistia porque
“afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as
graves violações de direitos humanos, ao impedir que os familiares das
vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme
estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o direito à
proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento,
precisamente pela falta de investigação, persecução, captura,
julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também
o art. 1.1 da Convenção.” Estes os termos em que há muito, sob a
ótica dos direitos humanos, está proclamada a imprescritibilidade dos
crimes contra os direitos de personalidade e de suas consequências, vez
que devem ser tratados sem conside ração a fronteiras e soberania
nacionais. É farta a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no
reconhecimento da imprescritibilidade da ação de reparação de danos
morais decorrentes de ofensas a direitos humanos, inclusive aquelas
praticadas durante o regime militar. Eis os exemplos: “Agravo
Regimental no Agravo de Instrumento. Processual civil. Administrativo.
Ação de reparação de danos morais. Prisão ilegal e tortura durante o
período militar. Prescrição quinquenal prevista no art. 1º do Decreto
20.910/32. Não ocorrência. Imprescritibilidade de pretensão
indenizatória decorrente de violação de direitos humanos fundamentais
durante o período da ditadura militar. Recurso incapaz de infirmar os
fundamentos da decisão agravada.
Agravo desprovido.
1. São imprescritíveis as ações de reparação de dano ajuizadas em
decorrência de perseguição, tortura e prisão, por motivos políticos,
durante o Regime Militar, afastando, por conseguinte, a prescrição
quinquenal prevista no artigo 1º do Decreto 20.910/32. Isso porque as
referidas ações referem-se a período em que a ordem jurídica foi
desconsiderada, com legislação de exceção, havendo, sem dúvida,
incontáveis abusos e violações de direitos fundamentais, mormente do
direito à dignidade da pessoa humana.
2. Não há falar em prescrição da pretensão de se implementar um dos
pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso
prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável
à dignidade. (REsp. 816.209/RJ, 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, DJ,
3/9/2007).
3. No que diz
respeito à prescrição, já pontuou esta Corte que a prescrição
quinquenal prevista no art. 1º do Decreto-lei 20.910/32 não se aplica
aos danos morais decorrentes de violação de direitos da personalidade,
que são imprescritíveis, máxime quando se fala da época do Regime
Militar, quando os jurisdicionais não podiam buscar a contento as suas
pretensões. (REsp. 1.002.009/PE, 2ª Turma, rel. Min. Humberto
Martins, DJ 21/2/2008).
4.
Agravo regimental desprovido.” (STJ, AgRg no Ag 970753/MG, 1ª Turma,
rel. Min. Denise Arruda, DEJ 12/11/2008). “Agravo regimental.
Administrativo. Responsabilidade civil do Estado. Danos morais. Tortura.
Regime militar. Imprescritibilidade. 1. A Segunda Turma desta Corte
Superior, em recente julgamento, ratificou seu posicionamento no
sentido da imprescritibilidade dos danos morais advindos de tortura no
regime militar, motivo pelo qual a jurisprudência neste órgão
fracionário considera-se pacífica. Não-ocorrência de violação ao art.
557 do CPC. Via inadequada para fazer valer suposta divergência entre
as Turmas que compõem a Primeira Seção. (…)
5. Agravo regimental não-provido.” (STJ, AgRg no REsp 970697/MG, 2ª
Turma, rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJE 5/11/2008). Cai como luva
ao caso em análise o trecho do acórdão de que foi relatora a Ministra
Eliana Calmon (REsp. 602.237): “Sob a égide da Constituição de 88,
inaugurou-se no Brasil uma nova visão do fenômeno jurídica dando-se
primazia aos princípios constitucionais, de forma a estar o magistrado
autorizado a afastar a lei ordinária, se esta colidir com algum
princípio da Lei Maior. Como a Carta da República tem como um dos seus
princípios fundamentais a preservação da dignidade da pessoa humana,
tem-se sustentado a imprescritibilidade do direito à recomposição
material ou moral, quando a lesão é causada por ato político, o qual
deixa a vítima inteiramente à mercê do Estado. Daí o reconhecimento da
imprescritibilidade da ação de indenização dos que sofreram tortura ou
outro dano qualquer por ato praticado durante o governo revolucionário
de 1964, diante da fragilidade da vítima para se insurgir contra o
Estado.” (…) “Não interfere na análise o fato de figurar no polo passivo
o agente estatal, porque não há fundament o jurídico, doutrinário ou
jurisprudencial, que autorize traçar, no tema discutido, uma linha
divisória entre a ação condenatória ou declaratória proposta contra o
Estado e a ação condenatória ou declaratória ajuizada contra seu
agente.” (sem destaque no original).
III. A prova oral deu integral respaldo ao relato feito constante da
inicial. Narraram as testemunhas a dinâmica dos eventos, a elevada
brutalidade dos espancamentos a que foi submetido o companheiro e irmão
das autoras, que o levaram a morte, ora sob comando, ora sob atuação
direta do requerido, na qualidade de comandante do DOI-CODI e da
operação OBAN, vinculadas a manutenção e proteção do regime militar.
Narrou a testemunha Laurindo Martins Junqueira Filho que: “Ustra era o
Comandante da unidade e assistiu minha tortura, assistiu a tortura do
meu companheiro que estava comigo. Ele não viu o Luiz Eduardo sendo
torturado, mas ele era o Comandante da unidade de tortura e orientava
essa t ortura pessoalmente.” (…) “Após o contato com o Luiz Eduardo, eu
recebi informações de um soldado do exército, que prestava serviço na
Unidade da OBAN, de que o Luiz Eduardo tinha morrido, tinha sido
torturado durante a noite. E esse soldado, de suposto nome Washington,
de cor negra, veio até mim e falou que o Luiz Eduardo tinha morrido de
gangrena nas pernas; tinha sido conduzido para um passeio – foi a
expressão que ele usou – na madrugada, e que tinha sido várias vezes
atropelado por um caminhão que prestava serviços para a unidade da OBAN.
Isso teria se repetido tantas vezes que os órgãos dele tinham sido
decepados pelo caminhão.” (fl. 802). A testemunha Leane Ferreira de
Almeida, por sua vez, relatou que: “ouvi os gritos do Luiz Eduardo
durante três dias, durante o período que as equipes comandadas pelo
Major Ustra o torturaram.” Noticia também que, embora não tenha
presenciado o momento da tortura de Luiz Eduardo, o requerido estava no
local dos fatos. “Estava o Ustra. A coisa principal que ele estava
fazendo naquele dia era torturar as pessoas que poderiam levar a uma
pessoa que ele procurava muito fortemente; (…) Ele gritava esse nome
pessoalmente enquanto ele era torturado no Pau-de-Arara. Parece um
código, mas era o nome de um militante. O objetivo dele era chegar aos
militantes. Quando eu não tive essa informação para dar, o Luiz Eduardo
foi preso e passou a ser torturado na mesma sequência e sala que eu,
durante três dias consecutivos. Todos os presos escutavam os gritos
dele incessantemente, até sua retirada da Operação Bandeirantes,
desacordado e colocado no porta-malas de uma carro. Isso foi visto por
mim, no pátio do Presídio Bandeirantes, comandado pelo Major Ustra;
colocado no porta-malas de um carro por quatro outros policiais da
mesma equipe. Foi colocado no porta-malas do carro, desacordado.
Parecia até que já morto.” (808). Coincidem os relatos da testemunha
Paulo de Tarso Vanucchi: “Retornei ao DOI-CODI da Rua Tutóia no mês de
julho. (…) respondi relatórios curtos e conheci o Merlino, que foi
trazido para a porta da minha cela, no xadrez três (…) onde foi a
massagem, deitado numa escrivaninha, que um enfermeiro – conhecido como
Boliviano – fez durante uma hora na minha frente. Pude conversar com o
Merlino, eu era estudante de medicina e notei que ele tinha numa das
pernas a cor da cianose, que é um sintoma de isquemia, risco de
gangrena. E nos dias seguintes pergunte para carcereiros, sobretudo
para um policial de nome Gabriel – negro, atencioso – o que tinha
acontecido com aquele moço e ele respondeu que ele tinha sido levado
para o hospital. Nos dias seguintes vi essa versão repetida e tinha
contato com o Major Tibiriçá, cheguei a perguntar sobre isso e ele nada
respondeu. E nesse sentido eu tenho a dizer que o Major Ustra era o
comandante que determinava tudo o que podia, o que devia ser feito e o
que não tinha (fl. 818). É de Joel Rufino dos Santos o seguinte
relato: “Pela versão que meu esse torturador, ele (Ustra) estava
presente e comandou a tortura sobre o Merlino. E decidiu ao final se
amputava ou não a perna do Merlino. A versão que recebi foi essa, que o
Merlino, depois de muito torturado, foi levado ao hospital e de lá
telefonaram, se comunicaram com o Comandante pra saber o que fazer.
Ele disse para deixar morrer.” (fl.844). As testemunhas arroladas pelo
requerido, por sua vez, nada souberam informar especificamente acerca
dos fatos, porque nada presenciaram, uma delas só o conheceu depois
da aposentadoria.
IV.
Evidentes os excessos cometidos pelo requerido, diante dos depoimentos
no sentido de que, na maior parte das vezes, o requerido participava
das sessões de tortura e, inclusive, dirigia e calibrava intensidade e
duração dos golpes e as várias opções de instrumentos utilizados.
Mesmo que assim não fosse, na qualidade de comandante daquela unidade m
ilitar, não é minimamente crível que o requerido não conhecesse a
dinâmica do trabalho e a brutalidade do tratamento dispensados aos
presos políticos. É o quanto basta para reconhecer a culpa do
requerido pelos sofrimentos infligidos a Luiz Eduardo e pela morte
dele que se seguiu, segundo consta, por opção do próprio demandado,
fatos em razão dos quais, por via reflexa, experimentaram as autoras
expressivos danos morais. Oportuno mencionar que, a par de tipificada
como crime, a tortura é vedada pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos e constitui indevida afronta à incolumidade daquele que está
sob a responsabilidade do Estado e do agente público no exercício do
comando. Nem mesmo o eventual cumprimento de ordem de superior
hierárquico poderia afastar a culpa do requerido, porque se trataria de
ordem absolutamente ilegal, que, por isso mesmo, não poderia ser
acatada, sem delinear culpa própria. Permito-me transcrever recente
julgado do Tribunal Regional Federal acerca do mesmo tema: “Indenização
por danos morais. Prisão. Tortura e morte do pai e marido das
autoras. Regime militar. Alegada prescrição. Inocorrência. Lei n.
9.140/95. Reconhecimento oficial do falecimento pela comissão especial
de desaparecidos políticos. Dever de indenizar.
1. Não há que se falar em ausência de interesse de agir dado o fato de
que a reparação especial prevista na Lei 9.140/95, não impede que o
interessado busque indenização sob outro fundamento jurídico.
2. Também deve ser afastada a alegação de prescrição da ação, visto
que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no
sentido da imprescritibilidade da ação para reparação por danos morais
decorrentes de ofensa aos direitos humanos, incluindo aqueles
perpetrados durante o ciclo do Regime Militar.
3. A documentação nos autos comprova que o falecido, em razão de sua
militância política, foi perseguido, preso e torturado, o que resultou
em seu óbito.
4. A morte do
pai e marido das autoras em decorrência das torturas que lhe foram
infligidas quando esteve preso no conhecido e temido DOPS
(Departamento de Ordem Política e Social), no mês de abril de 1970, foi
reconhecida pela Comissão Especial instituída pelo artigo 4º da Lei
9.140/95.
5. A morte prematura
do marido e pai privou as autoras de uma vida em comum com alguém
intelectualmente privilegiado, além de certamente ter reflexos
financeiros na vida de ambas a justificar a condenação da União a lhes
pagar indenização por danos morais.
6. Considerando o princípio da razoabilidade e tendo como parâmetro
decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 41614/SP, rel.
Min. Aldir Passarinho, 4ª Turma, j. 21/10/1999), entendo razoáveis os
valores fixados na sentença de primeiro grau a título de danos
morais. (…)” (TRF 3ª Região, 3ª Turma, rel. DEs. Rubens Calixto, j.
1/3/2012).
V. A ilicitude no
comportamento do réu teve o condão de causar ofensa a bem
juridicamente tutelado das autoras, de caráter extrapatrimonial.
Trata-se de dano reflexo, vez que conduta ilícita se dirigiu a ente
próximo e muito querido delas, integrante do círculo familiar de
relacionamento mais relevante. A brutal violência com que o requerido
pautou sua conduta fez ainda mais gravoso o resultado final morte, dada a
crueldade que, impingida a ente querido, acabou por atingir a esfera
de dignidade das próprias autoras. A morte prematura por motivo
político e com requintes de crueldade privou as autoras do convívio com
seu companheiro e irmão, respectivamente. Por certo, a indenização
almejada não será capaz de sanar a dor suportada pelas autoras, nem
suprir-lhes a ausência do ente querido. Destina-se a minorar o intenso
sofrimento. Muito se assemelham em seus objetivos a indenização aqui
almejada e o trabalho da Comissão da Verdade, cujos integrantes foram
recentemente empossados pela União. Como escr eveu Flávia Piovesan em
recente artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, edição de
6/5/2012: “Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ‘toda
sociedade tem o direito irrenunciável de conhecer a verdade do
ocorrido, assim como as razões e circunstâncias em que aberrantes
delitos foram cometidos, a fim de evitar que esses atos voltem a
ocorrer no futuro’. O direito à verdade apresenta uma dupla dimensão:
individual e coletiva. Individual ao conferir aos familiares de vítimas
de graves violações o direito à informação sobre o ocorrido,
permitindo-lhes o direito a honrar seus entes queridos, celebrando o
direito ao luto. Coletivo, ao assegurar à sociedade em geral o direito à
construção da memória e identidade coletivas, cumprindo um papel
preventivo, ao confiar às gerações futuras a responsabilidade de
prevenir a ocorrência de tais práticas. Como sustenta um parlamentar
chileno: ‘A consciência moral de uma nação dema nda a verdade porque
apenas com base na verdade é possível satisfazer demandas essenciais de
justiça e criar condições necessárias para alcançar a efetiva
reconciliação nacional’.” Com tais parâmetros, fixo a indenização
devida pelo requerido às autoras no valor de R$ 50.000,00 para cada
uma.
VI. Por todo o exposto,
JULGO PROCEDENTE o pedido e condeno o requerido a pagar a cada uma das
autoras indenização por danos morais no valor de R$ 50.000,00
(cinquenta mil reais), válido para esta data, a ser acrescido, até
final pagamento de correção monetária computada segundo os critérios
fixados pelo Tribunal de Justiça deste estado para atualização de
débitos judiciais. Juros de mora incidirão desde o evento danoso, nos
moldes da súmula 54 do STJ, sendo de 0,5% ao mês até 10/01/2003 e de
1% ao mês a partir de 11/1/2003. Arcará o requerido com o pagamento de
custas e despesas processuais, bem como de honorários advocatícios
que fixo em 10% do val or da condenação. Publique-se. Registre-se.
Intimem-se. São Paulo, 25 de junho de 2012.
CLAUDIA DE LIMA MENGE Juíza de Direito
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