A moderação dos Estados Unidos, que dizem estranhar a
rapidez do processo de impeachment do Presidente Lugo, não deve alimentar o
otimismo continental. Em plena campanha eleitoral, a equipe de Obama (mesmo a
Sra. Clinton) caminha com cautela, e não lhe convém tomar atitudes drásticas
nestas semanas. Esta razão os leva a deixar o assunto, neste momento, nas mãos
da OEA. Na verdade, se as autoridades de Washington não ordenaram a operação
relâmpago contra Lugo, não há dúvida de que o parlamento paraguaio vem sendo, e
há muito, movido pelo controle remoto do Norte. E é quase certo que, ao agir
como agiram, os inimigos de Lugo contavam com o aval norte-americano. E ainda
contam. Conforme o Wikileaks revelou, a embaixada norte-americana informava a
Washington, em março de 2009, que a direita preparava um “golpe democrático”
contra Lugo, mediante o parlamento. Infelizmente não sabemos o que a embaixada
dos Estados Unidos em Assunção comunicou ao seu governo depois e durante toda a
maturação do golpe: Assange e Manning estão fora de ação.
Não é segredo que os falcões ianques sonham com o controle
da Tríplice Fronteira. Nãohá, no sul do Hemisfério, ponto mais estratégico do
que o que une o Brasil ao Paraguai e à Argentina. É o ponto central da região
mais populosa e mais industrializada da América do Sul, a pouco mais de duas
horas de vôo de Buenos Aires, de São Paulo e de Brasília. Isso sem falar nas
cataratas do Iguaçu, no Aqüífero Guarani e na Usina de Itaipu. Por isso mesmo,
qualquer coisa que ocorra em Assunção e em Buenos Aires nos
interessa, e de muito perto.
Não procede a afirmação de Julio Sanguinetti, o
ex-presidente uruguaio, de que estamos intervindo em assuntos internos do
Paraguai. É provável que o ex-presidente - que teve um desempenho neoliberal
durante seu mandato – esteja, além de ao Brasil e à Argentina, dirigindo suas
críticas também a José Mujica, lutador contra a ditadura militar, que o manteve
durante 14 anos prisioneiro, e que vem exercendo um governo exemplar de
esquerda no Uruguai.
Não houve intervenção nos assuntos internos do Paraguai, mas
a reação normal de dois organismos internacionais que se regem por tratados de
defesa do estado de direito no continente, o Mercosul e a Unasul – isso sem se
falar na OEA, cujo presidente condenou, ad referendum da assembléia,
o golpe parlamentar de Assunção. É da norma das relações internacionais a
manifestação de desagrado contra decisões de outros países, mediante medidas
diplomáticas. Essas medidas podem evoluir, conforme a situação, até a ruptura
de relações, sem que haja intervenção nos assuntos internos, nem violação aos
princípios da autodeterminação dos povos.
A prudência – mesmo quando os atos internos não ameacem os
países vizinhos – manda não reconhecer, de afogadilho, um governo que surge
ex-abrupto, em manobra parlamentar de poucas horas. E se trata de sadia
providência expressar, de imediato, o desconforto pelo processo de deposição,
sem que tenha havido investigação minuciosa dos fatos alegados, e amplo direito
de defesa do presidente.
Registre-se o açodamento nada cristão do núncio apostólico
em hipotecar solidariedade ao sucessor de Lugo, a ponto de celebrar missa de
regozijo no dia de sua posse. O Vaticano, ao ser o primeiro a reconhecer o novo
governo, não agiu como Estado, mas, sim, como sede de uma seita religiosa como
outra qualquer.
O bispo é um pecador, é verdade, mas menos pecador do que
muitos outros prelados da Igreja. Ele, ao gerar filhos, agiu como um homem
comum. Outros foram muito mais adiante nos pecados da carne – sem falar em outros
deslizes, da mesma gravidade - e têm sido “compreendidos” e protegidos pela
alta hierarquia da Igreja. O maior pecado de Lugo é o de defender os pobres, de
retornar aos postulados da Teologia da Libertação.
Lugo parece decidido a recuperar o seu mandato – que
duraria, constitucionalmente, até agosto do próximo ano. Não parece que isso
seja fácil, embora não seja improvável. Na realidade, Lugo não conta com a
maior parcela da classe média uruguaia, e possivelmente enfrente a hostilidade
das forças militares. Os chamados poderes de fato – a começar pela Igreja
Católica, que tem um estatuto de privilégios no Paraguai – não assimilaram o
bispo e as suas idéias. Em política, no entanto, não convém subestimar os
imprevistos.
Os fazendeiros brasileiros que se aproveitaram dos preços
relativamente baixos das terras paraguaias e lá se fixaram, não podem colocar
os seus interesses econômicos acima dos interesses permanentes da nação. É
natural que aspirem a boas relações entre os dois países e que, até mesmo, peçam
a Dilma que reconheça o governo. Mas o governo brasileiro não parece disposto a
curvar-se diante dessa demanda corporativa dos “brasiguaios”.
No Paraguai se repete uma endemia política continental, sob
o regime presidencialista. O povo vota em quem se dispõe a lutar contra as
desigualdades e em assegurar a todos a educação, a saúde e a segurança,
mediante a força do Estado. Os parlamentos são eleitos por feudos eleitorais
dominados por oligarcas, que pretendem, isso sim, manter seus privilégios de
fortuna, de classe, de relações familiares. Nós sofremos isso com a rebelião
parlamentar, empresarial e militar (com apoio estrangeiro) contra Getúlio, em
1954, que o levou ao suicídio; contra Juscelino, mesmo antes de sua posse, e,
em duas ocasiões, durante seu mandato. Todas foram debeladas. A conspiração se
repetiu com Jânio, e com Jango – deposto pela aliança golpista civil e militar,
patrocinada por Washington, em 1964.
A decisão dos paises do Mercosul de suspender o Paraguai de
sua filiação ao Mercosul, e a da Unasul de só reconhecer o governo paraguaio
que nasça das novas eleições marcadas para abril, não ferem a soberania do
Paraguai, mas expressam um direito de evitar que as duas alianças continentais
sejam cúmplices de um golpe contra o estado democrático de direito no país
vizinho.
Postado por Mauro Santayana
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