Com base em textos do ex-ministro
Márcio Thomaz Bastos, José Carlos Dias, Arnaldo Malheiros e Antonio
Carlos de Almeida Castro (o Kakay) planejam condenar, em documento
assinado por todos os advogados dos réus na Ação Penal 470, o que chamam
de “degeneração autoritária de nossas práticas penais”. “Não podemos
esmorecer, vamos à luta”, diz Malheiros em uma das mensagens
27 de Dezembro de 2012 às 16:30
247 - A condenação já saiu, a
definição de penas também, mas a Ação Penal 470, que julgou o chamado
mensalão do governo Lula, está longe de acabar. Advogados dos réus
planejam lançar um manifesto conjunto condenando os supostos vícios do
processo. Com base em textos assinados pelo ex-ministro da Justiça
Márcio Thomaz Bastos (ele também defensor de um dos condenados), e em
artigo publicado no site Consultor Jurídico, eles planejam classificar o
julgamento como uma “degeneração autoritária de nossas práticas
penais”.
Os advogados estão trocando mensagens entre si com essa intenção, segundo
notícia
da Agência Estado. José Carlos Dias foi quem mais explicitamente
defendeu o manifesto. “O texto do Márcio é magnífico. Deveria ser
transformado num manifesto, numa carta dos advogados criminais e por nós
assinada”, afirmou.
Arnaldo Malheiros foi ainda mais enfático: “Não podemos esmorecer, vamos à luta!”.
No tal artigo, ainda que não mencione a palavra mensalão,
Thomaz Bastos critica argumentos usados pelos ministros do Supremo
Tribunal Federal (STF): “Quando juízes se deixam influenciar pela
‘presunção de culpabilidade’, são tentados a aceitar apenas ‘indícios’,
no lugar de prova concreta produzida sob contraditório. Como se coubesse
à defesa provar a inocência do réu!”.
Leia abaixo o
artigo
de Márcio Thomaz Bastos que incentivou os demais advogados dos réus a
produzirem um manifesto condenando o julgamento da Ação Penal 470:
“Vigiar e punir” ou “participar e defender”?
Por Márcio Thomaz Bastos
A importância da advocacia criminal é diretamente
proporcional à tendência repressiva do Estado. Nunca o esforço do
advogado criminalista foi tão importante como agora. É o que nos revela o
balanço crítico dos acontecimentos que marcaram a vida do Direito
Penal, neste ano que passou.
Desde que a democracia suplantou o regime de exceção, em
nenhum momento se exigiu tanto das pessoas que, no cumprimento de um
dever de ofício, dão voz ao nosso direito de defesa. Mas é na firmeza da
atuação profissional desses defensores públicos e privados que a
Constituição deposita a esperança de realização do ideal de uma
liberdade efetivamente igual para todos.
Se em 2012 acentuou-se a tendência de vigiar e punir, o
ano que se descortina convida a comunidade jurídica a participar do
debate público e a defender, com redobrada energia, os fundamentos
humanos do Estado de Direito. O advogado criminalista é, antes de tudo,
um cidadão. Agora é convocado a exercer ativamente a sua cidadania para
evitar uma degeneração autoritária de nossas práticas penais, para além
da luta cotidiana no processo judicial.
Não é de hoje que o direito de defesa vem sendo arrastado
pela vaga repressiva que embala a sociedade brasileira. À sombra da
legítima expectativa republicana de responsabilização, viceja um
sentimento de desprezo pelos direitos e garantias fundamentais. O
“slogan” do combate à impunidade a qualquer custo, quando exaltado pelo
clamor de uma opinião popular que não conhece nuances, chega a agredir
até mesmo o legítimo exercício da “liberdade de defender a liberdade”,
função precípua do advogado criminalista.
O papel social dos advogados, que a Constituição julga
indispensável, vem sendo esquecido. Não é raro vê-los atacados no
legítimo exercício de sua profissão. Uns têm a palavra cassada pela
intolerância à divergência inerente à dialética processual. Outros são
ameaçados injustamente de prisão, pela força que não consegue se
justificar pela inteligência das razões jurídicas. Nada disso é estranho
à prática da advocacia.
Ocorre que, em 2012, a tendência repressiva passou dos
limites. Ameaças ao exercício da advocacia levaram ao extremo a
“incompreensão” sobre o seu papel social numa sociedade democrática.
Alguns episódios dos últimos meses desafiaram os mais caros postulados
da defesa criminal. Refletir sobre as águas turbulentas que passaram é
fundamental para orientar a ação jurídica e política que tomará corpo no
caudal do ano que vem - em prol da moderação dos excessos de regulação
jurídica da vida social.
Um desses diabólicos redemoinhos nos surpreendeu em
agosto, com a pretendida supressão do habeas corpus substitutivo. A
Primeira Turma do STF considerou inadequado empregar a mais nobre ação
constitucional em lugar do recurso ordinário. O precedente repercutiu de
imediato nos tribunais inferiores, marcando um perigoso ponto de
inflexão na nossa jurisprudência mais tradicional.
Nenhum dos argumentos apresentados mostrou-se apto a
restringir o alcance desse instrumento fundamental de proteção da
liberdade. Ao contrário, revelaram uma finalidade pragmática de limpeza
de prateleiras dos tribunais. A guinada subordinou a proteção da
liberdade a critérios utilitários, como se conveniências administrativas
pudessem se sobrepor às rigorosas exigências de garantia do direito
fundamental.
O habeas corpus foi forjado em décadas de experiência na
contenção de abusos de poder. A Constituição indicou que sua aplicação é
ampla, abolindo as restrições outrora impostas pelo regime de exceção.
Abriu caminho para que a jurisprudência reafirmasse a primazia do valor
da liberdade.
O posicionamento dominante na época do regime autocrático,
todavia, ressurge nos dias de hoje. Em pleno vigor da democracia, o
retrocesso aparece sob o singelo pretexto de desafogar tribunais.
Porém, a abolição do habeas substitutivo dificultará a
reparação do constrangimento ilegal. Hoje, não são poucas as ordens de
libertação concedidas pelo Supremo, evidenciando a grande quantidade de
ilegalidades praticadas e não corrigidas. Por isso, a sua supressão
perpetuará inúmeros abusos.
O recurso ordinário, embora previsto constitucionalmente,
não é tão eficaz como o habeas para coibir o excesso de poder. A começar
por suas formalidades, que são muito mais burocráticas se comparadas às
do remédio constitucional. Convém não esquecer que a utilização deste
como via alternativa para reparação urgente de situações excepcionais
foi fruto de uma necessidade do cidadão, ao contrário da sua pretendida
eliminação.
A recente modificação da Lei de Lavagem de Dinheiro também
abriu um novo flanco para os abusos. O texto impreciso expõe o legítimo
exercício profissional a interpretações excessivas. Por trás da séria
discussão sobre os deveres profissionais na prevenção da lavagem de
dinheiro, esconde-se muitas vezes a vontade de arranhar o direito de
defesa dos acusados.
Há quem acuse o advogado de cometer um ilícito, quando
aceita honorários de alguém que responde a processo por suposto
enriquecimento criminoso. O claro intuito desse arbítrio é evitar que os
réus escolham livremente seus advogados. Restringe-se a amplitude da
defesa atacando os profissionais que, “por presunção de culpabilidade”,
recebem “honorários maculados”, mesmo que prestem serviços públicos e
efetivos.
Em afronta à própria essência da advocacia e em violação
ao sigilo profissional e à presunção de inocência, acaba-se criando uma
verdadeira sociedade de lobos, na qual todos desconfiam de todos. Para
alguns, o advogado deveria julgar e condenar seus próprios clientes.
Diante de qualquer atividade “suspeita”, deveria delatá-los, sob pena de
participar ele mesmo do crime de lavagem de dinheiro supostamente
praticado por quem procurou o seu indispensável auxílio profissional.
Convém lembrar que o advogado atende e defende com
lealdade quem lhe confia a responsabilidade de funcionar como o
porta-voz de seu legítimo interesse. Não deve emitir, ou mesmo
considerar, sua própria opinião sobre a conduta examinada, mantendo um
distanciamento crítico em relação ao relato que lhe é apresentado.
Atentos à criminalidade que se sofistica para dar
aparência de licitude a recursos obtidos de forma criminosa, nunca fomos
contrários à discussão sobre ajustes nos deveres profissionais de
algumas atividades reguladas. Contudo, a nova situação não pode servir
de desculpa para proliferação de um dever geral de delação ou para
devassar conteúdos legitimamente protegidos pelo sigilo profissional.
A advocacia criminal pauta-se pela confiança que o cliente
deposita no seu defensor, colocando em suas mãos o bem que lhe é mais
caro: sua própria liberdade.
Outro desafio contemporâneo à advocacia é a confusão entre
o advogado e seu cliente. O preconceito é tão antigo quanto a nossa
profissão. O que muda é o grau de consciência social que uma determinada
época tem a respeito do valor do devido processo legal. No início do
ano, ao defender um de meus clientes, sofri essa odiosa discriminação.
Na ditadura, os defensores da liberdade corríamos riscos e
perigos pessoais ao questionar o valor jurídico dos atos de exceção. Na
vigência do regime democrático, o pensamento autoritário encontrou na
velha confusão entre advogado e cliente um meio de suprimir a liberdade
com a qual ainda não se acostumou a conviver. A ignorância e a má-fé
sugerem que ou o advogado defende um réu inocente ou ele é cúmplice do
suposto criminoso.
Nada mais impróprio. A culpa só pode ser firmada depois do
devido processo legal. Nunca antes. É um retrocesso colocar em questão
esse dogma do Direito conquistado pela modernidade. Enquanto a confusão
persistir, devemos repetir sem descanso que o advogado fala ao lado e em
nome do réu num processo penal, zelando para que seja tratado como um
ser humano digno de seus direitos constitucionais.
A Reforma do Código Penal também é sintomática dessa
tendência repressiva. Elaborada por notáveis juristas e enviada em junho
para o Congresso, importa conceitos do direito estrangeiro, sem a
necessária adaptação à nossa realidade jurídica. Outros institutos
essenciais, como o livramento condicional, são suprimidos. Além disso,
eleva as penas corporais para diversos delitos e deixa passar a
oportunidade de corrigir falhas técnicas já de todos conhecidas.
Outro sinal dos tempos é a inovação da jurisprudência
superior na interpretação de alguns tipos penais, bem como a mudança de
postulados do Processo Penal. Assistimos a um retrocesso de décadas de
sedimentação de um Direito Penal mais atento aos direitos e garantias
individuais. Quando se trata de protegê-los, não pode haver hesitações.
Rompidos os tradicionais diques de contenção, remanesce o problema de
como prevenir o abuso do “guarda da esquina”, como diria um velho
político mineiro, às voltas com histórico desvio de rota na direção da
repressão sem freios.
Também notamos uma tendência a tornar relativo o valor da
prova necessária à condenação criminal, neste ano “bastante atípico”.
Quando juízes se deixam influenciar pela “presunção de culpabilidade”,
são tentados a aceitar apenas “indícios”, no lugar de prova concreta
produzida sob contraditório. Como se coubesse à defesa provar a
inocência do réu! A disciplina da persecução penal não pode ser
colonizada por uma lógica estranha, simplesmente para facilitar
condenações, nesse momento de reforço da autoridade estatal, sem
contrapartida no aperfeiçoamento dos mecanismos que controlam o seu
abuso.
A tendência à inversão do ônus da prova no processo penal
também coloca em questão a tradicional ideia do “in dubio pro reo”,
diante da proliferação de “presunções objetivas de autoria”. Tampouco a
dosimetria da pena pode ser uma “conta de chegada”.
Quanto mais excepcionais os meios, menos legítimos os fins
alcançados pela persecução inspirada pelo ideal jacobino da “salvação
nacional”. Tempos modernos são esses em que nós vivemos. Em vez de
apontar para o futuro, retrocedem nas conquistas civilizatórias do
Estado Democrático de Direito.
Nesses momentos tormentosos, é saudável revisitar os
cânones da nossa profissão. Como ensinava Rui Barbosa, se o réu tiver
uma migalha de direito, o advogado tem o dever profissional de buscá-la.
Independentemente do seu juízo pessoal ou da opinião publicada, e com
abertura e tolerância para quem o consulta. Sobretudo nas causas
impopulares, quando o escritório de advocacia é o último recesso da
presunção de inocência.
É necessário reafirmar os princípios que norteiam o
Direito Penal e lembrar, sempre que possível, que a liberdade do
advogado é condição necessária da defesa da liberdade em geral. A
advocacia criminal, desafiada pela ânsia repressiva, deve responder com
firmeza. Alguns meios de resgatar o papel que cumpre na efetivação da
justiça estão ao alcance da sua própria mão.
O primeiro passo deve ser investir num esforço pedagógico
de esclarecimento social acerca da relevância do papel constitucional do
advogado criminalista. Ele não luta pela impunidade. Também desejamos,
enquanto membros da sociedade, a evolução das instituições que tornam
possível uma boa vida em comum. Somos defensores de direitos
fundamentais do ser humano, em uma de suas mais sensíveis dimensões
existenciais: a liberdade de dar a si mesmo a sua regra de conduta.
Cabe a nós zelar pelas garantias dos acusados e pela
observância dos princípios básicos do Direito Penal do Estado
Democrático de Direito, contra as tentações do regime excepcional que
não deve ser aplicado nem mesmo aos “inimigos na nação”.
É nosso dever de ofício acompanhar a repercussão do
julgamento que pretendeu abolir o habeas corpus substitutivo,
manifestando-nos sempre que possível para demonstrar os prejuízos desse
regresso pretoriano. A fim de restabelecer o prestígio da ação
constitucional, também se faz necessária a continuidade de seu manejo
perante todos os tribunais.
Especificamente com relação às distorções que uma
interpretação canhestra da nova lei de Lavagem de Dinheiro pode
instituir, é importante registrar que a imposição do “dever de
comunicar” não pode transformar os advogados em delatores a serviço da
ineficiência dos meios estatais de repressão. É contrário à dignidade
profissional ver no advogado um vulgar alcaguete.
É evidente que essa condição não torna a advocacia um
porto seguro para práticas de lavagem de dinheiro, nem assegura a
impunidade profissional. Apenas permite o livre exercício de uma
profissão essencial à Justiça.
Deve ser louvada a recente decisão do Conselho Federal da
OAB, segundo a qual “os advogados e as sociedades de advocacia não têm o
dever de divulgar dados sigilosos de seus clientes que lhe foram
entregues no exercício profissional”. Tais imposições colidem com normas
que protegem o sigilo profissional, quando utilizado como instrumento
legítimo indispensável à realização do direito de defesa.
Ainda assim se faz necessário o constante aprimoramento
das regras éticas de conduta profissional. Em paralelo, sugere-se a
formulação de códigos internos aos próprios escritórios de advocacia,
com orientações, ainda que provisórias, acerca dessas boas práticas, no
intuito de resguardar os advogados que se vêm diante da indeterminada
abrangência da nova lei repressiva.
Esses “manuais de boas práticas” devem ser elaborados com
vistas também a regulamentar uma nova advocacia criminal que hoje se
apresenta. A consultoria vem ganhando espaço cada vez maior na área
penal, em razão do recrudescimento das leis penais, seja pela
proliferação de regras de compliance que regulam a atividade econômica.
Para que haja segurança também na prestação desse serviço, é
imprescindível uma regulamentação específica.
“Participar e defender”, em 2013, é a melhor maneira de
responder aos desafios lançados pelo espírito vigilante e punitivo
exacerbado no ano que passou. É renovar, como projeto, a aposta na
democracia e na emancipação, contra as pretensões mal dissimuladas de
regulação autoritária da vida social.
A repressão pura e simples não é suficiente para dar conta
do problema da criminalidade. Embora a efetiva aplicação da lei ajude a
aplacar o sentimento de insegurança, o Direito Penal não deve ser a
principal política pública.
Outras linhas de atuação política devem ser prestigiadas.
Pode-se pensar no controle social sobre o Estado, por meio do
aprofundamento das políticas de transparência. Elas ganharam novo
impulso com a promulgação de uma boa Lei de Acesso à Informação, que
está longe de realizar todas as suas potencialidades de transformação
criativa.
A prestação de contas de campanha em tempo real foi um
avanço inegável. Uma medida discreta, mas eficaz, entre outras que podem
ajudar a prevenir o espetáculo do julgamento penal.
Deve-se mencionar também a necessidade mais premente e
inadiável de nossa democracia: a reforma política, com ênfase no
financiamento público das campanhas eleitorais.
Enquanto o habeas ainda resiste, não podemos deixar de
aperfeiçoar mecanismos de controle de abusos de autoridade. A esfera da
privacidade e da intimidade das pessoas também carece de maior proteção
jurídica.
Nossos servidores públicos ainda esperam um sistema de
incentivos na carreira que recompense o maior esforço em favor dos
interesses dos cidadãos.
A simplificação de procedimentos administrativos e
tributários, ao diminuir as brechas de poder autocrático, pode
desarrumar os lugares propícios à ocorrência da corrupção que nelas se
infiltra.
É legítimo travar com a sociedade um debate aberto sobre os meios para a plena realização do pluralismo de ideias e opiniões.
Enfim, a educação para a cidadania, numa democracia segura
dos valores da cultura republicana, é tema que deve ocupar mais espaço
na agenda política de um país que não quer viver apenas sob a peia da
lei punitiva.
Na encruzilhada em que se encontra o Direito Penal
brasileiro, os desafios lançados pelo ano que passou só tornam mais
estimulante a nobre aventura da advocacia criminal. A participação
democrática e a defesa dos direitos humanos continuam apontando a melhor
direção a seguir. As dificuldades de 2012 só enaltecem a
responsabilidade do advogado, renovando suas energias para enfrentar as
lutas que estão por vir.
Como anotou um prisioneiro ilustre, a inteligência até
pode ser pessimista, mas continuamos otimistas na vontade de viver um
ano mais compassivo.
Márcio Thomaz Bastos é advogado e foi ministro da Justiça (2003-2007)