A outra tese do mensalão
Foto: Divulgação
Enquanto jornais e revistas semanais tentam julgar a Ação
Penal 470 no lugar do STF, a Editora Manifesto, do consagrado jornalista
Raimundo Rodrigues Pereira, lança o livro “A outra tese do mensalão”;
leia o ponto de vista dos editores; nos próximos dias, publicaremos os
demais capítulos
29 de Julho de 2012 às 21:05
Por Armando Sartori, Marcos Heleno Fernandes Montenegro, Sérgio Miranda, Raimundo Rodrigues Pereira e Roberto Davis
A outra tese do mensalão
Com a faca no pescoço. Ou sem a faca?
No final do ano passado, o jornalista Augusto Nunes relembrou no site
da Veja.com um detalhe significativo da primeira plenária do
Supremo Tribunal Federal que tratou do caso do mensalão, a sessão de
aceitação da denúncia que abriu o inquérito naquela corte. Nas palavras
de Nunes: “Às nove e meia da noite de 28 de agosto de 2007, o ministro
Ricardo Lewandowski chegou ao restaurante em Brasília ansioso por
comentar com alguém de confiança a sessão do Supremo Tribunal Federal
que tratara da denúncia do então procurador-geral da República, Antonio
Fernando de Souza, sobre o escândalo do mensalão. Por ampla maioria, os
juízes endossaram o parecer do relator Joaquim Barbosa e decidiram
processar os 40 acusados de envolvimento na trama. Sem paciência para
esperar o jantar, Lewandowski deixou a acompanhante na mesa, foi para o
jardim, na parte externa, sacou o celular do bolso do terno e, sem
perceber que havia uma repórter da Folha de S.Paulo por perto, ligou
para um certo Marcelo.
Como não parou de caminhar enquanto falava, a jornalista não ouviu
tudo o que ele disse durante a conversa de dez minutos. Mas qualquer
uma das frases que anotou valia manchete.” Depois desta abertura, num
texto mais longo, Nunes cita algumas das frases de Lewandowski: “A
tendência era amaciar para o Dirceu”, “A imprensa acuou o Supremo”,
“Todo mundo votou com a faca no pescoço”, “Não ficou suficientemente
comprovada a acusação”.
Ao relembrar a história, Nunes ataca Lewandowski por sua declaração
de que o julgamento poderá ser realizado apenas em 2013, pois ele terá
de proferir um voto paralelo ao de Barbosa, será o revisor oficial do
voto deste na sessão plenária e terá de ler os 130 volumes dos autos um a
um – em suas próprias palavras –, porque não poderá “condenar um
cidadão sem ler as provas”. Nunes disse, em seu comentário, que
Lewandowski “se puder, vai demorar seis meses para formalizar o que já
está resolvido há seis anos: absolver os chefes da quadrilha por falta
de provas”. E concluiu, com uma espécie de conclamação ao público da
Veja.com, o qual ele chama de “o Brasil decente”:“Para impedir que o STF
faça a opção pelo suicídio moral, o Brasil decente deve aprender a
lição contida na conversa telefônica de 2007. Já que ficam mais sensatos
com a faca no pescoço, os ministros do Supremo devem voltar a sentir a
carótida afagada pelo fio da lâmina imaginária.”
Em sua catilinária, Nunes repete o que a grande mídia mais
conservadora diz desde meados de 2005, quando o escândalo começou, a
partir de duas entrevistas de denúncia na Folha de S.Paulo. O
denunciante, o então deputado federal e atual presidente do PTB, Roberto
Jefferson, falou de uma mesada, um “mensalão”, paga regularmente a
deputados de partidos da base aliada do governo do ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva para que votassem com o governo. Nunes e outros
editorialistas de mesma opinião querem o julgamento do mensalão
imediatamente e a condenação dos acusados, especialmente de José Dirceu,
apontado como o “chefe da quadrilha”, porque acham ter sido o caso mais
do que bem apurado – por eles –, e é preciso pôr os que consideram
culpados na cadeia.
Felizmente, no Brasil ainda não é assim. O julgamento será feito não
pela mídia, mas nos termos da lei, numa sessão plenária do STF,
instituição em que corre o processo. Depois da aceitação da denúncia, em
2007, foi aberta a Ação Penal nº 470, e os réus foram ouvidos e
apresentaram suas testemunhas. No segundo semestre do ano passado, todos
– acusação, defesa e relator – expuseram suas considerações finais.
Faltam, agora, o voto inicial de Barbosa e o voto do revisor,
Lewandowski, para o julgamento começar, o que talvez aconteça ainda
neste semestre.
O que está em discussão, efetivamente? A nosso ver, examinando o
conteúdo do processo, Nunes não tem razão, mesmo que sua opinião seja
mais ou menos a mesma de uma autoridade indiscutível no caso,
o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, para quem o mensalão é
“o maior crime político da história da República”.
Não é estranho que Gurgel e Nunes tenham opiniões parecidas. No
Brasil, está acontecendo este fenômeno na política. Alguns políticos, e
mesmo procuradores e magistrados, processam o que a mídia investiga. E
como ela investiga mal, vê-se algo como neste caso: o procurador-geral,
num dos aspectos centrais da Ação Penal nº 470, tentar sacramentar
o julgamento já feito pela grande mídia mais conservadora. Como diz
Nunes, o caso “já está resolvido há seis anos”.
No País, felizmente, a grande mídia ainda não tem o poder legal de
decidir quem deve ou não ser condenado e preso. Os julgamentos ainda não
são feitos a partir do que a mídia mais conservadora escreve, embora
ela se empenhe nesse sentido. Os julgamentos são realizados com base nos
autos. Ainda existe o devido processo legal, que obriga a provar as
acusações com depoimentos, fatos, laudos periciais. E, a nosso ver, os
termos da denúncia do procurador-geral usados para justificar sua
pretensão de ter revelado o maior crime de nossa história alinhavam um
conjunto de indícios precários, alguns manifestamente ainda não
investigados quanto à sua ligação com a tese principal da acusação.
Para entender a história, é preciso ver que, a rigor, a denúncia
trata de dois delitos de tipos diferentes. Um deles teve sua
investigação feita e concluída basicamente pelo Congresso e pela Polícia
Federal. Vários dos delinquentes confessaram suas práticas ilegais –
quem deu dinheiro, o esquema Delúbio/ Marcos Valério e quem recebeu
dinheiro: dezoito deputados e mais cerca de 20 pessoas ligadas a
eles, todas réus no processo. E o caso está pronto para ser julgado. É o
referente ao chamado “caixa 2” praticado abusivamente pelo Partido dos
Trabalhadores a partir da vitória de Lula no primeiro turno das eleições
de 2002, quando os grandes empresários inclinaram-se por sua
candidatura e, como de hábito, despejaram contribuições clandestinas nos
cofres de sua campanha com vistas a receber, depois de sua posse, os
favores devidos pela ajuda eleitoral. Afinal, quem paga a orquestra
escolhe a música.
O segundo, de acordo com o procurador-geral, é o grande e histórico
crime de o PT ter formado uma “organização criminosa” com apoio do
governo federal e da mais alta direção do partido a fim de violar as
mais diversas leis, principalmente pela corrupção do processo
legislativo com o suborno de deputados e senadores para que votem com o
governo. O primeiro delito é público e notório. E confesso. Delúbio
Soares, o tesoureiro nacional do PT, e o publicitário Marcos Valério, um
dos donos de empresas cujo crédito foi usado na história, expuseram-no
amplamente em vários depoimentos no Congresso Nacional durante as
investigações do caso feitas em três CPIs. As afirmações dos dois foram
confirmadas posteriormente por cerca de duas dúzias de políticos e seus
auxiliares, que receberam dinheiro do esquema e foram ouvidos também
tanto nas CPIs como em inquéritos específicos da Polícia Federal.
Resumidamente, no primeiro semestre de 2003 o PT tomou dois
empréstimos praticamente iguais em bancos mineiros, um no Rural e outro
no BMG, totalizando, à época, 5 milhões de reais, e as empresas de
Marcos Valério emprestaram dos mesmos bancos um total cerca de oito
vezes maior, no mesmo período. E o dinheiro foi repassado aos dirigentes
de partidos da base aliada: ou diretamente a deputados e senadores, ou a
seus dirigentes ou prepostos. Isto está absolutamente claro desde o
final de 2005, com os trabalhos da principal CPI que tratou do caso, a
comissão mista do Senado e da Câmara que cuidava de uma denúncia
específica sobre corrupção na estatal dos Correios e acabou voltando-se
para o mensalão.
O outro crime é, até o momento, uma criação política. Não existe, nos
autos, prova de que no final de 2002 José Dirceu tenha assumido o
comando de um bando composto de 15 pessoas: ele, Delúbio, Genoíno e
Silvio Pereira – os principais dirigentes do PT na época –, Valério,
sete associados dele, a então presidente do Banco Rural e mais dois
diretores deste banco. Há vários indícios fortes de que os bancos
emprestaram dinheiro a Delúbio e às empresas de Marcos Valério sabendo
que o dinheiro ia para o PT. Mas não há qualquer prova nos autos de
que o dinheiro tenha sido usado para outro propósito
que não o financiamento de campanhas políticas. E, mais ainda, parece
completamente estapafúrdia a história de que o dinheiro tenha sido para
a compra de votos no Congresso, não só porque a maior parte do dinheiro
foi para o PT, especialmente para pagar as dívidas de campanha
assumidas por Duda Mendonça, mas porque nenhum dos 79 parlamentares da
base aliada ouvidos formalmente nos autos da Ação Penal nº 470,
inclusive os 18 que confessaram ter recebido dinheiro, admitiu a prática
da compra de votos, e alguns afirmam sequer ter ouvido falar disso. E a
procuradoria não apresentou nenhuma prova de que isso aconteceu. O
professor de ética e filosofia política da Universidade de São Paulo,
Renato Janine Ribeiro, escreveu em sua crônica semanal no jornal Valor
Econômico, no último dia 23 de janeiro, que o principal partido político
da oposição, o PSDB, estaria terceirizando o seu papel, transferindo-o
para a grande mídia, que, por sua vez, adota o escândalo como forma de
monitorar o governo. Disse ele: “Um dirigente da Associação Nacional de
Jornais disse, há dois anos, que, na falta de uma oposição consequente, a
grande imprensa assumiu o papel de opositora.” “A frase é infeliz”, diz
Ribeiro. “O papel da imprensa não é fazer oposição, mas dizer a
verdade”, lembra bem o professor.
Os articulistas da mídia mais conservadora não investigaram, em seu
papel de vanguarda da política oposicionista, direito a história do
mensalão. E querem que o STF sacramente o que eles dizem desde 2005. O
STF não tem tradição de fazer isso. Como diz o ex-deputado Roberto
Jefferson, o STF desconsiderou todo o teor político que levou ao
impeachment do presidente Fernando Collor de Mello pelo Congresso em
1992 quando julgou improcedentes todos os 103 processos movidos na corte
naquela ocasião alegando supostos crimes que foram a julgamento, mas
não tinham as devidas provas nos autos. E o órgão deve agir também
assim, agora. Deve punir com rigor ou encaminhar para o foro competente
todos os delitos já provados, inclusive o grande escândalo de ”caixa 2”
praticado e confessado pelo PT. E deve desqualificar ou reencaminhar à
procuradoria, para mais investigação, o suposto grande crime político do
qual ela não forneceu qualquer prova decente nos autos.
Além disso, a grande mídia conservadora blefa quando acha que pode
fazer “o Brasil decente” pressionar a ponto de fazer o STF votar “com
a faca no pescoço”. Acha que tem muita força. Não teve antes, quando de
certo modo deixou de pedir o impeachment do presidente Lula. Hoje,
parece querer sacramentar a condenação do PT e a de um de seus maiores
líderes, José Dirceu, por um suposto grande crime contra as instituições
da República. Mas mesmo isso o STF deve negar-lhe. E por uma razão
simples, do devido processo legal: não há prova nos autos.